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dA finitude das coisas

  • Foto do escritor: Glauco Castro
    Glauco Castro
  • 16 de ago.
  • 7 min de leitura
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Da finitude das coisas

 

- O que realmente te importa?

Faço essa pergunta com frequência em meu meio familiar, em conversas em meu trabalho, com as pessoas com quem me relaciono e também nas longas batalhas comigo mesmo quando mergulho em minhas reflexões.

Por mais que eu dê um tom natural de quem está fazendo uma pergunta qualquer, geralmente causa segundos de silêncio e a resposta demora a vir.

Já ouvi coisas do tipo “minha vida”, “meus filhos”, “minha família”, “minha saúde”, “viver a vida” e por aí vai.

Então, na parte teórica da “prova” de pergunta única, todos normalmente são aprovados. Respostas lindas, carregadas de emoção e algumas vezes com direito a olhos embargados em lágrimas.

Mas... e na prática?

Quando uma conversa é estética, outra pergunta se impõe, menos fotogênica e mais incômoda: “E o que você tem feito, de fato, com aquilo que disse que importa? ”

É aqui que o silêncio não dura apenas alguns segundos, vira um peso no ar. Ouço “ah, quando as coisas melhorarem…”, “quando eu terminar esse projeto…”, “quando eu me aposentar…”. É curioso como sempre há um “quando”, um horizonte móvel que recua um passo a cada aproximação. E nesse recuo silencioso mora uma verdade que evitamos encarar: a vida não está em pausa enquanto empilhamos “quandos”. Ela está acontecendo, irremediavelmente finita, neste exato segundo.

E então peço que reflita mais um pouco e adiciono outra pergunta.

- Com que frequência você se lembra que morrerá?

E normalmente ouço um “nunca”, “raramente" ou o silêncio com os olhos arregalados.


O barulho organiza o dia e, ao mesmo tempo, encobre aquilo que o silêncio deixaria à mostra. Pensar que vamos morrer não é apenas desconfortável, é subversivo. Rasga a fantasia de que temos tempo de sobra, desmonta listas intermináveis e exige escolhas. E escolher é perder.

Há uma dimensão psíquica nessa profunda recusa. A consciência da finitude produz uma ansiedade que a psicologia chama de terror existencial. Quando ela aparece, fazemos o que dá para fazer. Negamos, desviamos, racionalizamos. Amontoamos símbolos que prometem durar — status, seguidores, títulos, certificações, likes — como amuletos contra o resultado. O consumo vira liturgia, a tribo vira abrigo, a ideologia vira armadura. Se eu me fundir a algo maior, talvez eu não acabe. Talvez.


Também há um componente cultural. Vivemos numa época que veneramos a juventude e terceirizamos a morte para as bordas: hospitais, corredores frios, obituários discretos. A publicidade nos oferece cremes e superalimentos como quem diz, sem dizer: não é com você. A medicina prolonga, a tecnologia distrai. E nós confundimos prolongamento com sentido. Falamos “partiu”, “foi”, “descansou” — uma linguagem aliviada, mas também oculta. Sem palavras, não há diálogo; sem diálogo, não há preparo.


O mercado da atenção também faz sua parte.

Alimenta infinitos. As séries que não acabam, tarefas que se multiplicam. A máquina foi projetada para que não tenha aberturas. Porque nas aberturas o pensamento entra. E quando ele entra, pergunta: e se hoje fosse o último dia útil da sua vida, o que, de tudo isso, ainda faria sentido? Não é à toa que silêncio nos deixam nervosos. O vazio é um espelho.


Há ainda nossas visões: pensamos que estatísticas se aplicam aos outros. Otimismo de quem atravessa a rua olhando o celular, crentes de que “comigo não”, “agora não”. Só que a morte não tem agenda compartilhada. Quando chegar, recoloca tudo no tamanho certo. O que parece urgente fica pequeno. O que parecia adiável torna-se impossível. O abraço que seria na semana que vem, uma conversa que ficou para depois, uma visita que a gente ia fazer “no feriado”.

Evitar a morte, no entanto, cobra caro. Sem a régua da finitude, inflamos tarefas e desvalorizamos momentos. Vivemos em modo rascunho, como se a versão final fosse amanhã. Empurramos decisões que excluam a coragem: terminar o que não faz sentido, pedir perdão, admitir amor, recomeçar. E, quanto mais empurramos, mais a vida escorre para uma rotina tão cheia que não sobra espaço para o essencial.

O curioso é que o remédio costuma ser o próprio veneno. Encostar os olhos nessa ideia — eu vou morrer — não é convite ao desespero. É convite à precisão. O pensamento sobre a morte não é mórbido, é um afinador.

Ele organiza prioridades, rasga o excesso, devolve textura ao tempo. Quando lembramos que somos finitos, dizer “não” fica mais fácil, e o “sim” ganha um peso bonito. As tarefas foram escolhidas. Metas viram compromissos. Prazer vira presença.


Quando a morte se senta à mesa, paradoxalmente a vida se torna melhor. O trabalho passa a ser serviço, não fuga. O corpo vira casa, não projeto infinito. O amor fica menos performático e mais quieto. Menos prova, mais gesto. A coragem deixa de ser grito e vira constância. A culpa, quando chega, encontra perdão. E, quando não encontra, vira reparo.


Pensar na morte não resolve a morte. Mas resolve muita coisa da vida. Coloca urgência onde precisa e paciência onde convém. Ensina a perder sem se perder, a cuidar sem controlar, a agradecer sem contabilizar. Nos lembramos que a grande obra não é o currículo, é o cuidado que temos com os outros. E que o tempo, depois de gasto, não aceita reembolso.

Provavelmente, você não consiga fazer isso todo dia. Ninguém consegue. A negação também protege, nos dá fôlego para viver. Mas, se de vez em quando você abrir uma fresta, já basta. Em uma fresca cabe um sol inteiro.


Encarar a finitude dói, mas liberta. É justamente porque vamos morrer que vale a pena escolher com clareza, amar com gentileza e viver com urgência.

Falar de finitude é como acender uma forte luz branca numa sala em que nos acostumamos à penumbra. Encandeia. É desconfortável. Mas também é o único jeito de ver o que realmente está ali. E, ainda assim, quase ninguém se permite habitar por mais de trinta segundos o pensamento mais simples e mais comum de todos: um dia, eu vou morrer.

Não é novidade, não é segredo, não é estatística discutível. É apenas uma condição. Por que, então, evitamos com tanta disciplina?

Por que as pessoas não param para pensar que irão morrer?

Porque a ideia da própria morte toca nossa primeira ansiedade: a perda de controle, de vínculos, de narrativa. O corpo e a mente aprendem cedo a negar o que ameaça a estabilidade; trata-se de um mecanismo de defesa, não de maldade.

Porque estamos distraídos com maestria. Notificações, metas, telas, urgências. A enxurrada de estímulos oferece alívio imediato e o alívio imediato é um anestésico potente contra perguntas fundamentais.

Porque não fomos alfabetizados para a morte. Pouco se fala, pouco se ensina, pouco se ritualiza. Sem linguagem e sem rito, sobra medo e improviso. E improviso diante do inominável vira fuga.


Se aceitarmos que morreremos, talvez algo se mova. Não para um lugar sombrio, mas para um lugar mais verdadeiro. A consciência de que tudo termina não é convite ao desespero; é chamada com precisão. A finitude não diminui a vida, dá contorno a ela. Sem contorno, não há forma; sem forma, não há escolha.

É quando lembramos que o tempo é curto que as prioridades ficam nítidas. Quem merece a nossa presença, o que pode ser abandonado sem culpa.

Talvez o grande ruído da nossa era seja confundir intensidade com abundância, ocupação com sentido. Preenchemos a agenda até a borda como quem tenta calar o eco de um salão vazio. E o eco é justamente esse: um dia acaba. Repetido tantas vezes quanto necessário até ser ouvido.

Há quem tema que pensar na morte roube a alegria. Minha experiência, e a de tantos, é o oposto: é o pensamento da morte que devolve a alegria às coisas simples. O café quente com quem amamos. O abraço que não precisa ser adiado. Uma caminhada sem fones. O pedido de desculpas que não mais suporta o peso do orgulho.

Mas não é mórbido? Mórbido é viver no piloto automático. Mórbido é tratar o essencial como luxo de fim de semana. Mórbido é supor que sempre haja mais uma chance.

Pensar na finitude é um exercício de lucidez. É sentar-se, de tempos em tempos, para uma conversa franca com o calendário: se eu não tivesse a garantia do depois, o que faria agora? E, se não posso fazer tudo, o que eu não posso deixar de fazer?


Alguns gestos simples desmontam a anestesia:

  • Converse abertamente com quem ama sobre nossos medos, desejos e limites.

  • Crie rituais de presença: uma refeição sem distrações, uma visita sem pressa, um telefonema que não espera o “quando der”. Ouvir um filho sem o celular por perto, olhar a rua demoradamente.

  • Esvazie a mochila do supérfluo. Promessas feitas por educação, compromissos que não sustentam sentido, objetos que guardam culpas.

  • Pratique pequenas despedidas conscientes. Encerrar ciclos, agradecer antes de seguir, reconhecer que muito do que pesa já cumpriu seu papel.

  • Externe um testamento afetivo. O que quero que lembrem de mim, que músicas toquem, que coisas quero doar na vida.

  • Passe por lugares de memória. Um cemitério, um museu, um álbum antigo, como quem lê um manual de uso do tempo.

  • Acompanhe alguém em luto, porque é ali que a vida mostra seu vocabulário inteiro.


E, claro, não é fácil. O mundo oferece razões diárias para o esquecimento. A dor visita quando menos esperamos. O medo às vezes toma a frente. Mas há uma coragem mansa que podemos cultivar: a de não perder o aviso. A de instalar, no meio do barulho, a frase que teima em retornar: um dia eu vou morrer.

E que sorte, então, que hoje estou vivo. Que posso escolher. Que posso amar. Que posso mudar de ideia. Que posso dizer não. Que posso dizer sim.

Volto à pergunta inaugural com um acréscimo que a torna mais honesto: o que realmente te importa e como a consciência de que você vai morrer, muda a sua resposta?


Experimente deixar a frase relatada na língua sem pressa, como quem provou algo raro. Talvez você note que algumas urgências minguam, que algumas importâncias crescem, que o tempo ganha densidade. Não pelo pânico da contagem regressiva, mas pela delicadeza de saber que cada encontro é único, cada manhã é única, cada escolha é uma aposta que merecia ser feita com atenção.

A finitude das coisas não é uma ameaça. É a nossa chance. A chance de fazer caber um pouco do que é muito. Uma chance de trocar o “quando” pelo “agora”. A chance de dar forma à vida dizendo, com atos, o que tantas vezes já dissemos com palavras: isto é o que me importa.

E, se for mesmo, que aplique no calendário, no gesto, no olhar. Porque a morte, quando lembrada sem horror, devolve à vida o seu melhor nome: presença.

1 comentário

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Lelêêh Reis
Lelêêh Reis
19 de ago.
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O quanto falamos de vida e da vida quando falamos da morte. Muito boa a reflexão! Parabéns.

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